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A música “A Cidade” foi escrita pelo artista pernambucano Chico
Science, originalmente em 1988, e gravada em 1993.
Inicialmente era mais uma música retratando o difícil dia-a-dia do
povo e da vida cotidiana em uma grande cidade. Mas seu conteúdo
aprofunda-se em questões sociais que descritas ao longo dos dois
séculos anteriores, ontem e hoje continuam a ser bem atuais e
rotineiras no modo de vida capitalista a que estamos submetidos.
Abaixo a letra da música:
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O sol
nasce e ilumina as pedras evoluídas
Que
cresceram com a força de pedreiros suicidas
Cavaleiros
circulam vigiando as pessoas
Não
importa se são ruins, nem importa se são boas
E a
cidade se apresenta centro das ambições
Para
mendigos ou ricos e outras armações
Coletivos,
automóveis, motos e metrôs
Trabalhadores,
patrões, policiais, camelôs
A cidade
não pára, a cidade só cresce
O de cima
sobe e o de baixo desce
A cidade
se encontra prostituída
Por
aqueles que a usaram em busca de saída
Ilusora
de pessoas de outros lugares
A cidade
e sua fama vai além dos mares
No meio
da esperteza internacional
A cidade
até que não está tão mal
E a
situação sempre mais ou menos
Sempre
uns com mais e outros com menos
A cidade
não pára, a cidade só cresce
O de cima
sobe e o de baixo desce
Eu vou
fazer uma embolada, um samba, um maracatu
Tudo bem
envenenado, bom pra mim e bom pra tu
Pra a
gente sair da lama e enfrentar os urubu
Num dia
de sol Recife acordou
Com a
mesma fedentina do dia anterior
A letra nos remete a diversas facetas do capitalismo, lembrando a
voracidade com que os objetivos econômicos se sobrepõem aos sociais
e aos naturais. Science descreve “... pedras evoluídas Que
cresceram com a força de pedreiros suicidas...”; pedras evoluídas
neste caso seriam os prédios e grandes construções, que em
especial na região do autor contrastavam com a situação da cidade,
que por sua vez tinha originalmente em sua área a presença de
mangues, mata nativa e rios, dando lugar a construções “evoluídas”,
tão características do modo de produção capitalista, erguidas ao
custo de operários que estavam inseridos em um sistema que
priorizava a evolução do produto físico construído; ao final
dispensava suas participações e necessidades perante o próprio, ao
passo em que nascia a exigibilidade de mão-de-obra “qualificada”
para desenvolver atividades junto a este produto. Os produtos
passam a ter mais valor do que os produtores. Segundo Karl Marx e
Friedrich Engels: “Ao produzirem os seus meios de existência, os
homens produzem indiretamente a sua própria vida material” (A
Ideologia Alemã), seja ela boa ou má.
Os “cavaleiros”, podem ser os órgãos de controle e repressão
ou os próprios proprietários dos meios de produção, definindo os
caminhos da cidade, cidade esta que na música é o centro do poder e
da ambição, não importando o papel ou a índole de quem a habita,
pois tudo parece um ciclo de sobrevivência que gira em torno da
interdependência. As relações sociais deram lugar à transformação
do trabalho em produto comercializável, toda classe social acaba por
ter como objetivo e qualificador o lucro e o acúmulo de bens, que
segundo Weber é um dos elementos determinantes de classe social.
Nunca será interesse da burguesia ou dos proprietários que as
classes proletárias sejam possuidoras de seus meios de produção;
isso ocorria nas sociedades primitivas, onde as relações de
comércio eram praticamente nulas, e a agricultura de subsistência
imperava.
É necessário ao capitalismo que exista sempre mão-de-obra
proletária a um preço que torne amplo e constante o lucro; nenhum
proprietário anseia lucrar apenas o necessário para sua
sobrevivência, e nenhum capitalista objetiva limitar seus lucros. Ou
seja, não existe interesse em que as classes inferiores se equiparem
ao nível dos burgueses e proprietários, pois aconteceria
basicamente uma escassez de operários, de mão-de-obra lucrativa, de
clientes, e um aumento da concorrência, ao passo que haveria mais
pessoas com condições de produzir para si e para os demais. Nesse
ponto, a canção é incisiva ao dizer “O de cima sobe e o de baixo
desce”, pois, além da necessidade de existência do proletariado
aos interesses capitalistas, as classes “intermediárias” de
produtores e comerciantes que surgem entre as classes menos
favorecidas da sociedade, acabam por criar “microcosmos”
capitalistas, que exploram o trabalho e as necessidades econômicas
dentro da própria sociedade proletária. “A cidade se encontra
prostituída”, pois todos objetivam e cultuam o dinheiro, pois a
“saída”, a sobrevivência, incorre em aderir ao ciclo.
A necessidade de sobreviver dos oriundos das regiões onde a economia
de subsistência entrou em colapso devido aos mais diversos fatores
culturais, econômicos e naturais, acaba por levar todos “à
cidade”, onde sua imagem de prosperidade e fluxo econômico seduz e
contagia pessoas que acabam inseridas em favelas e guetos, exercendo
por obrigação das exigências capitalistas, um trabalho muitas
vezes considerado degradante e desumano. Marx e Engels lembram o
êxodo do operário em A Ideologia Alemã: “... Estes
trabalhadores, chegando à cidade isolados, nunca conseguiram
constituir uma força (...) os mestres dessa corporação
submetiam-nos às suas leis e organizavam-nos de acordo com os seus
interesses...”. E a submissão à necessidade: “... força de
trabalho maciça, separada do capital ou de qualquer espécie de
satisfação, mesmo limitada...”.
Seguindo os objetivos capitalistas de produção, a canção diz: “No
meio da esperteza internacional. A cidade até que não está tão
mal”, e nos lembra da tendência e adesão mundial ao capitalismo
globalizado, onde reservadas as devidas proporções culturais,
econômicas e sociais, segue-se a mesma linha de tantos outros
países, ricos ou pobres. O ciclo continua dia após dia, pois a base
da sociedade hoje está no comércio, no lucro e na venda da
mão-de-obra, se não está bom para um, sempre haverá outro
disposto a assumir o seu lugar.
É interessante entender e compor um pensamento de esquerda para poder criticá-lo.
É interessante entender e compor um pensamento de esquerda para poder criticá-lo.
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