quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A Cidade de Chico Science


-->
 A música “A Cidade” foi escrita pelo artista pernambucano Chico Science, originalmente em 1988, e gravada em 1993.
 Inicialmente era mais uma música retratando o difícil dia-a-dia do povo e da vida cotidiana em uma grande cidade. Mas seu conteúdo aprofunda-se em questões sociais que descritas ao longo dos dois séculos anteriores, ontem e hoje continuam a ser bem atuais e rotineiras no modo de vida capitalista a que estamos submetidos. Abaixo a letra da música:


-->
O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas
Que cresceram com a força de pedreiros suicidas
Cavaleiros circulam vigiando as pessoas
Não importa se são ruins, nem importa se são boas
E a cidade se apresenta centro das ambições
Para mendigos ou ricos e outras armações
Coletivos, automóveis, motos e metrôs
Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs
A cidade não pára, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce
A cidade se encontra prostituída
Por aqueles que a usaram em busca de saída
Ilusora de pessoas de outros lugares
A cidade e sua fama vai além dos mares
No meio da esperteza internacional
A cidade até que não está tão mal
E a situação sempre mais ou menos
Sempre uns com mais e outros com menos
A cidade não pára, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce
Eu vou fazer uma embolada, um samba, um maracatu
Tudo bem envenenado, bom pra mim e bom pra tu
Pra a gente sair da lama e enfrentar os urubu
Num dia de sol Recife acordou
Com a mesma fedentina do dia anterior

A letra nos remete a diversas facetas do capitalismo, lembrando a voracidade com que os objetivos econômicos se sobrepõem aos sociais e aos naturais. Science descreve “... pedras evoluídas Que cresceram com a força de pedreiros suicidas...”; pedras evoluídas neste caso seriam os prédios e grandes construções, que em especial na região do autor contrastavam com a situação da cidade, que por sua vez tinha originalmente em sua área a presença de mangues, mata nativa e rios, dando lugar a construções “evoluídas”, tão características do modo de produção capitalista, erguidas ao custo de operários que estavam inseridos em um sistema que priorizava a evolução do produto físico construído; ao final dispensava suas participações e necessidades perante o próprio, ao passo em que nascia a exigibilidade de mão-de-obra “qualificada” para desenvolver atividades junto a este produto. Os produtos passam a ter mais valor do que os produtores. Segundo Karl Marx e Friedrich Engels: “Ao produzirem os seus meios de existência, os homens produzem indiretamente a sua própria vida material” (A Ideologia Alemã), seja ela boa ou má.
Os “cavaleiros”, podem ser os órgãos de controle e repressão ou os próprios proprietários dos meios de produção, definindo os caminhos da cidade, cidade esta que na música é o centro do poder e da ambição, não importando o papel ou a índole de quem a habita, pois tudo parece um ciclo de sobrevivência que gira em torno da interdependência. As relações sociais deram lugar à transformação do trabalho em produto comercializável, toda classe social acaba por ter como objetivo e qualificador o lucro e o acúmulo de bens, que segundo Weber é um dos elementos determinantes de classe social.
Nunca será interesse da burguesia ou dos proprietários que as classes proletárias sejam possuidoras de seus meios de produção; isso ocorria nas sociedades primitivas, onde as relações de comércio eram praticamente nulas, e a agricultura de subsistência imperava.
É necessário ao capitalismo que exista sempre mão-de-obra proletária a um preço que torne amplo e constante o lucro; nenhum proprietário anseia lucrar apenas o necessário para sua sobrevivência, e nenhum capitalista objetiva limitar seus lucros. Ou seja, não existe interesse em que as classes inferiores se equiparem ao nível dos burgueses e proprietários, pois aconteceria basicamente uma escassez de operários, de mão-de-obra lucrativa, de clientes, e um aumento da concorrência, ao passo que haveria mais pessoas com condições de produzir para si e para os demais. Nesse ponto, a canção é incisiva ao dizer “O de cima sobe e o de baixo desce”, pois, além da necessidade de existência do proletariado aos interesses capitalistas, as classes “intermediárias” de produtores e comerciantes que surgem entre as classes menos favorecidas da sociedade, acabam por criar “microcosmos” capitalistas, que exploram o trabalho e as necessidades econômicas dentro da própria sociedade proletária. “A cidade se encontra prostituída”, pois todos objetivam e cultuam o dinheiro, pois a “saída”, a sobrevivência, incorre em aderir ao ciclo.
A necessidade de sobreviver dos oriundos das regiões onde a economia de subsistência entrou em colapso devido aos mais diversos fatores culturais, econômicos e naturais, acaba por levar todos “à cidade”, onde sua imagem de prosperidade e fluxo econômico seduz e contagia pessoas que acabam inseridas em favelas e guetos, exercendo por obrigação das exigências capitalistas, um trabalho muitas vezes considerado degradante e desumano. Marx e Engels lembram o êxodo do operário em A Ideologia Alemã: “... Estes trabalhadores, chegando à cidade isolados, nunca conseguiram constituir uma força (...) os mestres dessa corporação submetiam-nos às suas leis e organizavam-nos de acordo com os seus interesses...”. E a submissão à necessidade: “... força de trabalho maciça, separada do capital ou de qualquer espécie de satisfação, mesmo limitada...”.
Seguindo os objetivos capitalistas de produção, a canção diz: “No meio da esperteza internacional. A cidade até que não está tão mal”, e nos lembra da tendência e adesão mundial ao capitalismo globalizado, onde reservadas as devidas proporções culturais, econômicas e sociais, segue-se a mesma linha de tantos outros países, ricos ou pobres. O ciclo continua dia após dia, pois a base da sociedade hoje está no comércio, no lucro e na venda da mão-de-obra, se não está bom para um, sempre haverá outro disposto a assumir o seu lugar.

É interessante entender e compor um pensamento de esquerda para poder criticá-lo.